terça-feira, 24 de dezembro de 2019

O SUS, o Paradoxo e a Ideologia


Tenho duas filhas que estão com oito e doze anos. Estão começando a encarar a complexidade do mundo. Tenho me empenhado para que compreendam a idéia de paradoxo e o quanto podemos nos afastar de nossas convicções quando cochilamos com relação a este conceito. E o quanto é possível se tornar hipócrita.

O Brasil está polarizado, talvez como nunca. Sou do time que acha o atual presidente a imagem em espelho da anterior e produto deste contexto. Um paradoxo. Quanto mais um polo se move, mais fortalece o outro em um movimento de ação e reação que ao fim e ao cabo quem não esta em um desses barcos se sente nauseado. Como toda imagem em espelho, alguns aspectos são idênticos como a maneira ideologizada de governar (“nós contra eles”) enquanto outros opostos como o caráter, sendo que a ex presidente representa o lado bom.

Cada pólo nutre uma ideologia supostamente oposta a outra, mas que se encontram na disputa pelo poder. Tem sido bastante difícil nestes tempos discutir políticas públicas, em especial quanto à forma de remuneração e financiamento na saúde, mesmo com a vantagem da literatura e as bases científicas terem muito conhecimento acumulado nesta área. O que vale é como “meu pólo pensa” e não o que está publicado. Aliás, lê-se muito pouco do que foi publicado. Estava falando sobre ideologia com um colega médico e reclamava da dificuldade de focar no mérito das questões sem uma discussão partidarizada. E a conversa acabou da seguinte forma:

“Colega: Mas o que a esquerda tem reclamado é que não estamos criticando com mais energia as políticas de saúde do governo atual
Eu: Pois é exatamente isto que estou chamando de debate ideologizado. Se fossemos focar no que o Ministério da Saúde publicou em 2019 teríamos que estar elogiando muito mais. Você acha que tem que criticar as políticas de saúde mesmo que sejam corretas por causa da orientação partidária ou por estar em desacordo com outras áreas do governo? Todos perdemos com isso, o SUS perde com isso.”

Não votei no governo atual e não votaria se fosse hoje. Mas o Ministério da Saúde publicou uma série de portarias e tomou medidas que são motivo de celebração por quem defende verdadeiramente o SUS, e não faz disso um business pessoal. Como pode este governo misógino, que tem como símbolo arma de fogo, ter publicado tantas políticas estruturantes para o SUS? Como pode?

O método científico exige isenção. Hoje as políticas públicas podem seguir métodos considerados científicos. Não é fácil ter que admitir que um governo com tantos problemas em tantas áreas, em especial nos costumes, tenha acertado a mão justamente na área em que atuamos. Vale a pena elencar os acertos:

- No novo organograma a atenção primária passou a ter o status mais elevado, de secretaria se equiparando aos hospitais, um pleito antigo e politicamente difícil de executar
- Medida Provisória 890/2019 instituiu o Programa Médicos pelo Brasil e a contratação de médicos de família via CLT e não mais por bolsas como era o Mais Médicos
- Portaria 2979/2019 definiu o financiamento por capitação ponderada por pessoa inscrita, ou seja, realmente cuidada, além de pagamento por desempenho e ações estratégicas
- Portaria 3222/ 2019 instituiu o pagamento por desempenho incluindo instrumentos consagrados como PCATool que mede os atributos da atenção primária à saúde, o PDRQ 9 que mede a relação do profissional como o usuário e o NPS que mede a satisfação.
- Portaria 3510/2019 definiu o incentivo, previsto na portaria 2979, para equipes que tenham residência de medicina de família e comunidade, dentre outras

A última grande mudança no financiamento havia ocorrido em 1997 quando o Ministro Adib Jatene praticamente enterrou o financiamento por consulta e passou a repassar para as cidades um valor fixo chamado Piso de Atenção Básica (PAB) pela estimativa da população de acordo com o IBGE, e um variável pela quantidade de equipes de saúde da família. Foi um enorme salto. O atual governo está mantendo o direcionamento, ou seja, o principal incentivo continua capitação (per capita) mas por pessoa cadastrada corrigido por idade, ou seja crianças e idosos representam um valor maior a ser repassado.

Esta é a forma de incentivo que fez a fama do NHS inglês. No Brasil, até a portaria ser discutida, havia aproximadamente 90 milhões de pessoas cadastradas mas o repasse era relativo a 140 milhões. O receio de que a mudança seja apenas para diminuir o repasse tem sentido lógico mas a portaria deixa claro que qualquer eventual perda será compensada em 2020, ou seja, nenhum município receberá menos do que recebeu em 2019 para que tenham tempo de se adaptarem.
Qual o sentido de quem cita o sistema de saúde que adotou esta medida, incentivo por capitação por pessoa inscrita, ser contra exatamente esta medida? Os argumentos tem sido do tipo “funciona lá, mas não aqui”. São paradoxos cobertos de ideologia. Há mais exemplos quando se analisa o comportamento da esquerda quando teve a oportunidade de ser protagonista:

- o PT não assinou a constituição de 1988
- a esquerda não apoiou na primeira década a Estratégia Saúde da Família que foi uma política apartidária feita por técnicos competentes, encampada pelo Adib Jatene e depois expandida pelo Serra
- as prefeituras petistas frequentemente defenderam especialistas focais nas equipes de atenção primária
- as primeiras portarias que incentivavam a residência de medicina de família e comunidade (3839/ 2010 e 4299/ 2010) foram publicadas no final de 2010 e revogadas logo nos primeiros atos do governo que assumiu em 2011 e apenas agora, com a portaria 3510/2019, a política pode ser retomada.

Foram oito anos praticamente perdidos em termos de políticas estruturantes. Não houve interesse em mexer no que realmente daria sustentabilidade e exigiria um maior desgaste político como a residência médica mandatória regulando a formação pós graduada, que é a regra nos países com sistemas públicos universais. Todas as fichas foram colocadas em duas políticas que não tinham nem base científica nem sustentabilidade: Programa da Melhoria do Acesso e da Qualidade (PMAQ) e Programa Mais Médicos pelo Brasil (PMMB).

O PMAQ utilizou instrumentos não validados e que eram modificados ano a ano impossibilitando uma avaliação minimamente acurada. O Mais Médicos, importou de uma só vez 14000 profissionais de um total de 40.000 equipes, ou seja, 35% da força de trabalho. Apesar dos médicos cubanos serem na sua maioria bem treinados, a política em si desviou o foco e o esforço da formação de médicos de família em território nacional e passou a seguinte mensagem para os aparelhos formadores: “podem formar os cirurgiões plásticos porque a questão da falta de médicos de família está resolvida”.

Mas não estava porque uma hora os médicos cubanos iriam embora. Era frágil por não começar pela formação e pela regulação da residência. E nenhum país sério importa 35% da força de trabalho de uma política estruturante de uma só vez. Para agravar, os médicos cubanos vieram, por intermédio de uma empresa chamada Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc), segundo noticiado por grandes veículos (http://g1.globo.com/bemestar/noticia/2014/02/cubana-pede-r-149-mil-por-dano-moral-e-salarios-do-mais-medicos.html).  Esta empresa é estatal do ponto de vista cubano mas privada sob o prisma brasileiro. Portando, o Mais Médicos pode ser considerado a maior política de privatização da história do SUS. O ápice dos paradoxos.

Enfim, neste mundo paradoxal, os militantes encontram os militares e um alimenta o outro numa ação simbiótica. Quem quer se ver livre deste mundo polarizado tem por obrigação manter a racionalidade. Todos somos seres políticos, mas não necessariamente partidarizados. Qualquer demonstração de racionalidade, isenção ou concordância com alguma política deste governo tem sido acusada pelos opositores de apoio incondicional. É uma agressão não a uma pessoa, mas a própria tentativa de racionalidade. Afinal, os opostos se atraem. Só resta uma alternativa: a resistência.


Página da Comercializadora de Serviços Médicos Cubanos S.A. (http://www.smcsalud.cu/smc) acessada em 22/12/2019 com propaganda de cirurgia estética



domingo, 24 de novembro de 2019

Precisamos falar sobre vacinas

Quando se fala em "vacinas", uma marca (ou brand) secular, é preciso separar o joio do trigo. Poucas coisas se tornaram tão difíceis na medicina quanto entender as vacinas do ponto de vista epistemológico. Já não se trata mais de um conceito único. Algo similar ocorre com o termo "câncer" que é usado para tumores na pele, no pulmão ou no pâncreas, doenças claramente distintas quanto ao prognóstico e mesmo etiologia.

Hoje há pelo menos três diferentes conceitos usados para o mesmo termo "vacina". São eles:

1. vacinas terapêuticas: são as utilizadas em imunoterapia para determinadas alergias; embora na medicina se use principalmente o termo "imunoterapia", pois envolve mobilização do sistema imunológico, é comum também o termo "vacina para alergia"

2. vacinas com objetivo de proteção individual: a vacina contra gripe é a principal representante deste grupo; não há a priori o objetivo de bloqueio da circulação do vírus

3. vacinas que objetivam o bloqueio populacional como da polio, sendo que a mais debatida ultimamente é a do sarampo.

Vacinas se tornaram um excelente negócio pois as que objetivam proteção, em geral, tem como público alvo grandes populações. A vacina da gripe tem uma peculiaridade ainda mais atrativa do ponto de vista comercial: deve ser aplicada anualmente. Ou seja, como vacina, por ter que ser aplicada anualmente utilizando cepas do ano anterior, não é um produto muito efetivo. Porém, dificilmente há algo tão rentável quanto a vacina contra gripe, que, diga-se de passagem, é bastante questionada cientificamente, em especial para adultos saudáveis.

A distinção mais importante é entre as vacinas que tem um claro objetivo de bloqueio populacional e as que não tem esse objetivo ou ele ainda não está bem estabelecido. Poucas ações em saúde, e hoje são muitas que tem uma "base científica sólida", mobilizam tantos recursos, governos e famílias como vacinas que tem como princípio o bloqueio populacional. Para estas vacinas atingirem seu objetivo de impedirem a circulação do vírus é necessário que aproximadamente 95% da população seja imunizada. Isso significa que se uma pessoa não fizer a vacina pode prejudicar uma outra já que o vírus voltará a circular. Ou seja, é importante monitorar a "cobertura vacinal".

As vacinas cujo objetivo é a proteção individual funcionam como um "medicamento preventivo". Ou seja, a "cobertura vacinal" não tem a mesma importância mas quase sempre nas notícias fala-se também dela para estas outras vacinas, o que serve como uma propaganda gratuita. A "cobertura" vacinal é tão importante nas vacinas de proteção individual quanto para o controle de hipertensão, diabetes ou colesterol. Não deveria ser motivo de alarde mas sim de monitoramento apenas.

Algumas vacinas como HPV não demonstraram capacidade de bloqueio populacional ainda e seriam consideradas de proteção individual, mas podem demonstrar na medida que os estudos avançam. Já vacinas como da gripe podem ser necessárias como bloqueio para populações específicas como trabalhadores da saúde, mesmo assim as evidências não são substanciais e é um dos tópicos mais polêmicos envolvendo o tema "vacinas".

A principal implicação de entender as especificidades das vacinas é poder se dedicar com maior ênfase àquelas que de fato necessitam de cobertura para exercerem a função de bloqueio como as vacinas contra sarampo e polio. Muito se tem discutido sobre as razões para os recentes surtos de sarampo em diversos países. Tem sido bastante comum culpar os "movimentos anti-vacina" e as "fake news" pela queda na cobertura vacinal, porém, não há muitas evidências científicas de que estas sejam sequer as principais causas. Há muitas outras hipóteses para serem testadas, algumas específicas da realidade nacional, por exemplo:

  • problema na migração e interoperabilidade dos dados acarretando sensação de queda na cobertura quando esta já era baixa
  • "custo de oportunidade" (faz-se uma ação e deixa-se de fazer outra) - com o aumento da quantidade de doses até os 10 anos, que praticamente dobrou de 1998 a 2018, além de todas as atividades preventivas, muitos cuidadores não conseguem se organizar e acabam privilegiando as ações mais divulgadas
  • a vacina contra o sarampo não garantiria imunidade "para o resto da vida" como se acreditava; esta hipótese tem acumulado cada vez mais evidências
  • fatores desconhecidos, intrínsecos a ecologia do vírus que provocaria um surto a cada 10 anos, aproximadamente
  • educação precária com baixa compreensão da importância das vacinas 
Vacinas que tem maior viés comercial por serem produzidas e vendidas pela indústria farmacêutica, como do HPV e da gripe, muitas vezes  recebem uma carga midiática maior sendo que nem sempre são as que comprovaram capacidade de bloqueio populacional. É fundamental investigar todas as hipóteses e compreender todas as facetas deste complexo problema como, por exemplo, a interação do fator "custo de oportunidade" com as eventuais "fake news". Ou seja, uma pessoa que está saturada de tantas ações preventivas seria mais suscetível a "fake news" do que outra com maior capacidade de se organizar para cumprir todas as tarefas sugeridas e embasadas em evidências. 

Um artigo emblemático demonstrou há alguns anos que um profissional pode gastar 7,5 das suas 8 horas diárias de trabalho apenas sugerindo ações preventivas que tenham base científica sem sequer escutar o paciente. Qual a dedicação e o custo para cumprir todas estas tarefas? Como diz o ditado, sempre há uma resposta simples e errada para um problema complexo. Achar que a culpa é apenas das "fake news" pode ser uma enorme "fake news" por si só. A incompreensão do problema em todas as suas dimensões leva a medidas apenas punitivas que em geral resultam da ignorância e desespero das autoridades sanitárias. Será que estamos próximos de uma nova revolta da vacina mais de 100 anos depois? Será que desta vez a "marca" vacina terá sua reputação arranhada por mau uso?








sábado, 26 de outubro de 2019

Reflexões sobre o Outubro Rosa


Gustavo Gusso

A campanha “Think Before You Pink” traz uma perspectiva pouco usual sobre o Outubro Rosa (https://www.thinkbeforeyoupink.org/). A mamografia é um exame de rastreamento, ou seja, é usado para detectar precocemente doenças ou lesões que podem se tornar malignas. Rastreamento é diferente de investigação clínica pois ocorre quando não há nenhum sintoma ou sinal do problema. Quando há um risco familiar aumentado mas não há sintomas, o exame também é chamado de rastreamento, porém para populações específicas.

Outro exame que pode ser usado como rastreamento é a glicemia, que mede a quantidade de açúcar e diagnostica diabetes. Existem milhares de exames que podem ser usados na detecção precoce de doenças, mas alguns são recomendados enquanto outros não. Por exemplo, não é recomendado que se faça periodicamente ressonância magnética para detecção precoce de câncer cerebral. Muita gente acha que o único motivo é o custo. Isto não é verdade. Na ciência muitas vezes o lado financeiro é o último fator a ser considerado mesmo com toda explosão dos custos em saúde. O principal fator é a relação benefício versus risco. Para se aprovar a recomendação de um exame de rastreamento, é necessário que o mesmo passe por diversos testes muito semelhantes a aprovação de um novo medicamento. O estudo mais comum usado nestes testes é o ensaio clinico randomizado. Ou seja, uma parte das pessoas sorteadas faz o exame e a outra parte não faz, depois se analisa como cada uma evoluiu ao longo dos anos. 

Como no caso dos medicamentos, é preciso sempre avaliar em cada pessoa os riscos e os benefícios da intervenção, no caso, fazer mamografia. O potencial benefício é mais claro: detectar precocemente um câncer, tratar e mudar o roteiro, fazendo com que a pessoa viva mais do que viveria se não tivesse feito a mamografia. Porém, pouco se fala dos riscos, mas existem essencialmente três tipos:

  • Falso positivo: quando o exame detectou uma lesão e não havia nada de fato, o que só pode ser confirmado com exames mais invasivos como biópsia
  • Sobrediagnóstico: há de fato a lesão mas ela não avançaria; só é possível ter conhecimento da existência do sobrediagnóstico estatisticamente, ou seja, comparando pessoas que passaram ou não por rastreamento e a incidência de mortalidade; quando se detecta mais porém a mortalidade não muda, o “excesso” de detecção é considerado sobrediagnóstico
  • Estresse emocional: é um desdobramento do falso positivo pois por um período, até confirmar que não se trata de uma lesão importante, ou mesmo que não há nenhuma alteração, a pessoa passa por um período de desequilíbrio por vivenciar um suposto diagnóstico de uma doença grave; também pode ocorrer com o sobrediagnóstico ao não ter certeza se aquele problema causaria de fato consequências para a saúde, tornando o processo de decisão do tratamento desgastante. 

Quando o exame é de fato recomendado? Quando o benefício supera o risco. Isso ocorre em poucas situações pois exige algumas condições como:

  • Problema frequente
  •  Exame suficientemente acurado para produzir pouco falso positivo
  •  Há tratamento disponível com alta taxa de sucesso
  •  A pessoa aceita passar pelo tratamento caso seja diagnosticada
  • Os estudos mostraram que o benefício supera o risco

Quanto menos frequente o problema, maior a chance de ter muito falso positivo e de não valer a pena o rastreamento populacional. Isso ocorre em mamografia antes dos 50 anos para mulheres de baixo risco, por exemplo, segundo os estudos. A periodicidade também é outro fator muito difícil de se decidir, dado que a quantidade de falso positivo, ou seja, de risco, se acumula. Há estudos mostrando, por exemplo, que se a mulher dos 50 aos 70 anos fizer mamografia com frequência maior que bienal, a chance de ter um falso positivo ao longo deste período e no acumulado dos exames passa de 50%. Por isso, a recomendação do Ministério da Saúde no Brasil, bem como da maioria dos organismos internacionais é uma vez a cada 2 anos dos 50 aos 70 ou 74 anos. Após os 74 anos há menos estudos e é possível que também os riscos superem os benefícios pois começa a haver uma chance da pessoa morrer por outra causa mesmo sendo portadora de pequenas lesões malignas, ou que o tratamento não muda o curso do problema sendo mais prejudicial se feito precocemente do que benéfico. Ou seja, em cada faixa etária, o mesmo exame tem um efeito diverso.

Por fim, o auto-exame tem mostrado nos estudos alta taxa de falso positivo, assustando desnecessariamente as mulheres. Portanto, passou a não ser mais recomendado de forma sistemática. Ao invés disso, a recomendação é do auto-toque (“breast awareness”), ou seja, que a mulher se conheça e se toque de forma cotidiana naturalmente e não para procurar uma doença especificamente.
Para ilustrar, um centro de pesquisa que estuda comunicação de riscos elaborou o gráfico que mostra os riscos e benefícios da mamografia na mulher acima dos 50 anos.  






Muita gente, inclusive profissionais da saúde, argumenta que "tem conhecido cada vez mais pessoas com menos de 50 anos com câncer de mama". As decisões são individuais e devem ser compartilhadas mas os dados precisam vir de estudos e não exclusivamente da experiência individual. Uma figura semelhante a esta deveria estampar os outdoors da campanha Outubro Rosa  para que cada mulher possa tomar uma decisão pessoal. É sempre importante explicar todos os lados e caso não seja possível comunicar toda esta complexidade em um cartaz, ainda não há nada melhor do que uma conversa com o médico de confiança. O ideal é que os exames de rastreamento e as recomendações de promoção à saúde sejam individualizados, ou seja, cada pessoa tem riscos específicos e o conjunto de orientações é único.
Refrências:

1. Welch HG, Schwartz L, Woloshin S. Overdiagnosed: Making People Sick in the Pursuit of Health. Beacon Press: Boston, 2011.
2. https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/Page/Document/UpdateSummaryFinal/breast-cancer-screening1?ds=1&s=breast
3. https://www.inca.gov.br/tipos-de-cancer/cancer-de-mama
4. https://www.harding-center.mpg.de/en/fact-boxes/early-detection-of-cancer/breast-cancer-early-detection
5. Gøtzsche & Jørgensen. Cochrane Database Syst Rev 2013(6):CD001877.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Mais Medicina Geral

Gustavo Gusso

O programa Mais Médicos do Governo Federal estimulou a discussão da quantidade e distribuição dos médicos no Brasil. Os dados exaustivamente analisados e divulgados mostram que há neste momento uma deficiência no numero de médicos se comparado com Europa mas também com Argentina e Uruguai. Além disso, há má distribuição dos médicos . O principal argumento usado pelos representantes das entidades médicas é que a distribuição é ruim apenas porque falta estrutura e mercado para o médico atuar. Porém, a pior distribuição não é geográfica, mas sim por especialidade.

De fato, há falta de médicos, mas estudo conduzido pelo Professor Milton Martins da Faculdade de Medicina da USP (relatório 1 e relatório 2) demonstrou que o número de vagas de medicina é bastante suficiente. O problema é que a criação de faculdade de medicina é uma ação que apesar de poder ser colocada em prática em curto prazo, embora não seja recomendado, traz efeitos a médio ou longo prazo. O estudante demora seis anos para se formar e ate cinco anos para cursar uma residência, ou seja, os primeiros médicos entram em massa no mercado após 10 anos. Além disso, uma faculdade produz superávit de médicos por 40 anos, tempo médio de trabalho de um médico, ou seja, quando os primeiros formados começam a se aposentar e a produção de novos médicos de cada faculdade se equilibra com os que deixam a profissão. Desta forma a criação de uma faculdade de medicina como ação feita para reduzir o déficit de médicos atinge seu apogeu em 50 anos e a perspectiva é que em menos tempo do que isso, com as faculdades de medicina criadas nos últimos anos e com a redução da fertilidade, o Brasil terá mais médicos que a grande maioria dos países que servem de referência hoje.

A única forma de se lidar com a deficiência de médicos a curto prazo é a importação dos mesmos. Por isso a maioria dos países desenvolvidos utiliza deste recurso completando as vagas de residência que sobram com os melhores médicos de países em pior situação econômica e social. Ou seja, as provas de revalidação não são eliminatórias mas classificatórias e entram os melhores candidatos até que a ultima vaga de cada especialidade, cuja distribuição é determinada pela necessidade do país, seja preenchida. Isso traz problemas, em geral, ao país que esta exportando os médicos e que gastou muito nesse investimento. Por isso, esta ação já foi condenada na Organização Internacional do Trabalho e na Organização Mundial da Saúde. Um problema excepcional é a forma como Cuba exporta seus médicos lidando como “commodity”, ou seja, confisca o passaporte, impede acompanhamento de parentes e fornece apenas uma ajuda de custo aos que estão indo em “missão”.  Desta forma, a importação de médicos é potencialmente ruim para o país que esta exportando mas previne ações trágicas e pouco efetivas como a abertura indiscriminada de escolas de medicina em curto prazo no pais que os está recebendo.

Quanto ao segundo aspecto, tão ou mais grave que a má distribuição geográfica é a má distribuição por especialidades. A distribuição geográfica é em geral corrigida pelos governos nos países em que há sistema de saúde organizado através da regulação da criação de postos de trabalho. Mesmo em países onde o sistema é baseado em seguros de saúde considerados publico-privados como Alemanha e França, o médico recém saído da residência não pode trabalhar onde bem entender. A regulação das vagas de residência é ainda mais rígida. Hoje se sabe através de inúmeros estudos que quando há aproximadamente 50% das vagas para generalistas (clinica médica geral, pediatria e medicina de família e comunidade) e 50% para especialistas o sistema funciona melhor,  os pacientes são protegidos de intervenções desnecessárias, os especialistas ganham mais cuidando apenas da área para a qual foram treinados e há redução da mortalidade. Até 2011 as entidades médicas foram maioria na Comissão Nacional de Residência Médica que produziu nos últimos 30 anos uma enorme distorção da relação de vagas por especialidades em relação a vagas para áreas gerais pois estas eram destinadas conforme as demandas dos próprios médicos e estudantes de medicina.


Enfim, a impressão que fica pelas manifestações públicas é que a categoria médica acredita apenas na premissa que o mercado corrige as distorções quando é exatamente o contrário, o mercado as tem produzido, pelo menos no setor saúde, provavelmente o mais complexo de toda cadeia produtiva. Segundo a experiência dos países que obtiveram sucesso na organização do sistema de saúde, a regulação estatal quando bem feita, desde as vagas de residência até os postos de trabalho é bastante protetora tanto para os pacientes quanto para os médicos. 

sexta-feira, 15 de março de 2013

A socialização da saúde: nem estatal nem privatizado


Gustavo Gusso
Professor da Disciplina de Clinica Geral
da Universidade de São Paulo

No dia 5 de março de 2013, Lygia Bahia e colaboradores publicaram um artigo que causou polêmica (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/96924-dilma-vai-acabar-com-o-sus.shtml). Creio que o maior problema esteja no foco. A responsabilidade pelo “risco de privatização”, se é que ele existe pois o sistema já é privatizado, não é “do governo Dilma”. Como todo problema complexo é impossível apontar um único responsável e gostaria de me ater aqui em apenas um deles: uma parte dos sanitaristas brasileiros.

Acredito que o Movimento da Reforma Sanitária existiu como um movimento de “reforma” extremamente positivo e necessário por aproximadamente 20 ou no máximo 25 anos e acabou em 1990 com a Lei Orgânica da Saúde. Tal qual o Tropicalismo, teve a ditadura e a contestação como principal alimento.  Ao mesmo tempo que contestava, se aproveitava das leis e decretos extremamente autoritários, como a Lei da Reforma Universitária de 1968 que obrigou que todas as faculdades de medicina da época incorporassem um Departamento de Medicina Preventiva, algo impensável em uma democracia. Outro exemplo do aproveitamento deste momento foi a criação da carreira de médico sanitarista na década de 70 que atraiu muitos estudantes de medicina. Após 1990 grande parte dos egressos do Movimento da Reforma Sanitária assumiu cargos de gestão e passou a ter “conflitos de interesse” sendo este, em parte, o motivo das discordâncias com o artigo da Lygia Bahia. O desembarque maciço das lideranças do Movimento da Reforma Sanitária nos cargos de gestão e a formalização do Sistema Único de Saúde (SUS) representou uma retificação de prumo nunca superada. Nos anos seguintes deveria ter havido um aprofundamento das discussões conceituais mas o que se viu foi o contrário, uma inércia que dura até os dias de hoje e que até produziu politicas interessantes, apesar de pouco elaboradas, como a Estratégia Saúde da Família, que deu instintivamente nova chance ao clinico geral, agora inserido em uma equipe. Ou seja, a inércia pode ser benéfica quando a força motriz é positiva como foi o Movimento da Reforma Sanitária. Mas é limitada e não é capaz de corrigir rumos com o dinamismo necessário.

Ao mesmo tempo, muitas “políticas” produzidas e que quiseram “ditar rumos” nos últimos vinte anos configuram jabuticabas pouco testadas e muitas vezes vendidas como a panaceia mas com fundo ideológico e corporativista que dialogam pouco ou nada com a organização dos serviços. São exemplo disto matriciamento, clinica ampliada, projeto terapêutico singular e acolhimento. Este ultimo “conceito” foi lançado em um artigo com cinco referências sendo três dos próprios autores e uma de Gregorio Baremblit. Não fala no atributo “acesso” ou em gestão da clinica, pressão de demanda, etc... Há casos de textos com vinte referências sendo onze dos próprios autores. Muitas dessas politicas foram elaboradas para a necessária incorporação de equipes multiprofissionais mas sem um estudo de demanda com base na realidade. São politicas “intuitivas” e financiadas com dinheiro publico. As vezes que contestei “conceitos” como projeto terapêutico singular (a demanda de tempo para sua prática aliada ao dinamismo familiar incontrolável a torna pouco custo efetiva e inócua) gestores me tranquilizaram dizendo “na prática ninguém faz”.

A criação do SUS foi um movimento muito ideológico que desprezou elementos centrais das experiências internacionais e conhecimentos científicos disponíveis com o argumento que “não é possível separar ideologia e ciência”. Ou seja, “o mais importante é ter uma ideologia, o resto vem naturalmente”. É preciso racionalidade e manter o foco nos autores que estudam organização dos serviços. Não ajuda citar Gregorio Baremblit, Michel Foucault ou Paulo Freire pois, apesar de ícones, nunca refletiram sobre a organização dos serviços.  Não há quase produção da década de 70 ou 80 que fala dos caminhos que o país estava adotando. Ainda hoje não se conta a história do SUS como a mudança de um modelo Bismarckiano para um Beveridgiano, com todos os benefícios e RISCOS que isso traria. E quando se conta esta história se diz que no modelo Bismarckiano de Seguro Social apenas trabalhadores têm acesso. Isso não é verdade absoluta e os sistemas holandeses, franceses, belga e alemão de hoje são provas cabais de que trata-se de uma falácia. Além disso, pouco se fala e se publica que os Centros de Saúde Escola e Unidades Básicas de Saúde chamadas tradicionais com os “programas” do adulto, da mulher e da criança foram criados a imagem e semelhança das policlínicas idealizadas por Nikolai Semashko, Ministro da Saúde de Lenin de 1918 a 1930. Seria compreensível este modelo em 1980, mas insistir em 2013? Também é pouco relatado que o Movimento da Reforma Sanitária foi alimentado pela produção intelectual americana uma vez que desde a década de 20 muitos sanitaristas ganharam bolsa de estudos da Fundação Rockefeller e da Organização Pan Americana da Saúde (OPAS) para fazer pós graduação na Johns Hopkins ou em Harvard onde treinariam “como combater o comunismo parecendo ser um”. O principal mote eram as ações programáticas. Portanto, há um sentido lógico para o atual estágio do SUS e colocar palavras de ordem na constituição como "saúde é um dever do estado" além de decidir que o sistema seria financiado por impostos gerais definitivamente não são condições necessárias e suficientes para desenvolver um sistema público de saúde minimamente decente. Ou seja, dado que o artigo 199 da constituição diz que "a assistência à saúde é livre a iniciativa privada", a vitória do Movimento da Reforma Sanitária foi bastante limitada, se é que se pode falar em vitória. 

É importante lembrar que no Brasil real de hoje há uma mistura de Beveridge (SUS e Estratégia Saúde da Família), resquícios de Bismarck (Cassi, GEAP, Hospitais dos Servidores Publicos), resquícios de Semashko (Unidades Básicas tradicionais e Centros de Saúde Escola) e americano (planos de saúde). Porém, a resultante é algo pior que o americano pois além de ser o financiamento majoritariamente privado, este recurso em parte vem de renuncia fiscal, algo impensável até mesmo para os americanos nos moldes que tem no Brasil (onde se retira dos pobres para dar aos ricos). Quando se ensina sobre o SUS muitas vezes se diz frases de efeito como “é o principal movimento de inclusão social brasileiro porém ainda inacabado”. O artigo da Lygia fala em “reforma incompleta” e “carência de profissionais, baixa resolutividade da rede básica de serviços e péssimo atendimento à população”. Mas qual a causa desta deficiência? De novo, como é um problema complexo provavelmente é multifatorial e pouco tem a ver com o “Governo Dilma” que acabou de chegar e pegou esta “reforma inacabada”. A responsabilidade dos lideres do Movimento da Reforma Sanitária ao não apontar corretamente os rumos tem provavelmente uma participação maior. A não diferenciação de "financiamento" e "serviço" quando se fala em "privatização" é um erro inaceitável hoje em dia. O texto publicado na Folha não tratou deste assunto especificamente mas a repercussão foi confusa.

Frequentemente os sistemas canadense ou inglês são citados como modelos, no sentido amplo, que serve de inspiração, mas não para ser copiado. Muitos professores mostram o filme do Michael Moore (Sicko) para “provar” que o SUS está no caminho certo como se este fosse espelho dos sistemas inglês e canadense ali retratados. Negligenciam na discussão que estamos muito mais próximos do sistema americano e que o Michael Moore, se quisesse, faria um filme por semana com histórias de desgraças do sistema de saúde brasileiro cujo SUS corresponderia, nesta analogia, ao Medicare, Medicaid, Vetterans Affairs ou, mais recentemente, a reforma Obama. Nestas discussões selecionam o que interessa dos modelos de sucesso como o financiamento por impostos gerais (modelo beveridgiano), e escondem pontos importantes como:

1. Nestes sistemas o médico nunca foi estatutário e sempre teve autonomia encarando os centros de saúde  (ou consultórios) como “pequenos negócios” que vende 100% da sua "produção" ao governo (qualquer semelhança com as Organizações Sociais - OS - não é mera coincidência, a diferença que as OS são "grandes negócios"). Desde que se tornaram “sistemas públicos e universais”, o financiamento nestes países foi majoritariamente publico e o serviço sempre foi majoritariamente privado, no sentido mais primitivo da palavra, ou seja, muitas vezes pertencendo aos próprios médicos que vendem seus serviços a um mesmo comprador e que por isso os regula.
2. Sempre houve na porta de entrada um generalista muito bem formado (a partir da década de 90 com residência obrigatória) que chamam de médico de família ou “general practitioner”, cujo treino nestes países (ou mesmo no Brasil) muito pouco tem a ver com o oferecido pela residência de medicina preventiva ou pela medicina interna (clinica médica)
3. A remuneração dos médicos nestes sistemas nunca foi por salário fixo e começou com produção avançando para um mix com base em capitação, produção e resultado.

Isto não é um “detalhe” que “não precisa ser copiado porque não vamos requentar nada”, como bradam os sanitaristas mais nacionalistas. Ou seja, em grande parte o sucesso destes sistemas está nesta relação entre financiamento publico e serviços privados e no papel do generalista bem formado na porta de entrada. Um sistema é chamado “publico” quando seu financiamento é majoritariamente publico e não os serviços que podem (e devem) ser privados. Um argumento para ser assim é que classe média-alta alguma quer ir em médico-funcionário-publico no Reino Unido, na França, no Japão, na Holanda ou no Brasil. Nesta classe média estão incluídos os próprios profissionais da saúde. Todos resistiriam bravamente a ir a um médico-funcionário-público assim como pesquisadores-funcionários públicos que estudam o SUS relutariam em perder seus planos de saúde custeados pelos institutos de pesquisa (públicos). Os bons médicos, com raras exceções mas que existem, por muitos motivos também desistem em algum momento da carreira de serem funcionários públicos com salário fixo. É uma hipocrisia mortal a um país uma pessoa defender sem base conceitual ou histórica um sistema com financiamento público e serviço publico quando esta mesma pessoa prefere usar o serviço privado. Se o governo fizer com a população o que já faz com muitos dos seus funcionários que é comprar planos de saúde isso não significa que o sistema se tornará privado desde que o governo regule e dite as regras. O pior dos mundos seria o governo comprar planos de saúde da forma como estão, desregulados, prometendo um produto no ato da venda e entregando outro, sem filtro com generalista na porta de entrada, pouco custo efetivos, com dados e resultados obscuros e nada transparentes, etc.. Esta hipótese representa uma tragédia, porém, não é por causa dos serviços privados em si mas pela desregulação.  Apenas quatro países desenvolvidos possuem sistemas publico-publico: Espanha, Portugal, Finlândia e Suíça. Apesar de relativamente pequenos, os quatro estão fazendo reformas para mudar esta situação, ou seja, manter o financiamento publico, mas dar um caráter privado aos serviços, sendo que já há uma gradual substituição de serviços públicos por privados nestes quatro países em diferentes estágios.

Infelizmente toda esta discussão é negligenciada no Brasil por causa de um viés ideológico, corporativista e sindical. O sistema de saúde brasileiro nem pode ser considerado publico pois é majoritariamente de financiamento privado. O setor privado é o sócio majoritário e quem dita as regras. Portanto, não há o menor “risco de privatização do sistema de saúde brasileiro”, uma vez que aqui o financiamento já é majoritariamente privado. Este desequilibrio pode aumentar apenas. Ou seja, a discussão não é sobre a privatização do sistema de saúde brasileiro mas sobre sua  estatização que nunca aconteceu. Mesmo com esta triste realidade de um sistema privado, muitos pensadores argumentam que o Brasil vai fazer “melhor que o Reino Unido e que o Canadá e que não aceitamos nada requentado”. Porém, enquanto aqui se mira no financiamento público-serviço público se acerta no financiamento privado com renuncia fiscal e serviço publico ruim e para pobre. 

O que tem por vir é a parte mais difícil, que é atingir as classes médias e alta. É preciso foco e uma discussão menos ideológica e mais racional para acertar o alvo. Um sistema publico-publico eficiente não vai acontecer como fruto de um pensamento mágico. E um sistema com financiamento publico, com forte regulação pelo estado (pois quem paga em geral tem elementos para regular) com serviços contratualizados e  regulados, provavelmente seja o caminho mais próximo para a universalização de fato e para melhor equidade. O foco do artigo da Lygia é exatamente a isenção e a renuncia fiscal que são as piores formas de financiamento pois o estado abre mão de um dos principais mecanismos de regulação que é a compra maciça de serviços, abandona a população a própria sorte, judicializa a saúde e tende a favorecer os mais ricos. Isso já acontece nas chamadas média e alta complexidade quando o SUS compra leitos ou serviços de hospitais filantrópicos ou privados. É muito mais difícil na porta de entrada ou na atenção primária por dois motivos que também têm relação com a “ideologização”: porque lida com o maior numero de pessoas e porque tem uma alta proporção de pessoal na área administrativa cuidando de programas verticais como hipertensão e diabetes, saúde do idoso, saúde da criança, etc.. Se o sistema for de financiamento publico com serviços privados como é no Reino Unido, Canadá, Holanda, Noruega, Austrália, Nova Zelândia, etc... uma parte considerável dos funcionários que trabalham na gestão perde a função e aumenta muito de importância as áreas de auditoria, contratualização, epidemiologia, etc.... Mesmo com toda ideologização e resistência já está acontecendo no Brasil esta privatização dos serviços de atenção primária (não do financiamento, nem do sistema), de novo como produto da inércia, uma “força maior que tem conduzido a saúde enquanto lemos Foucault”, de maneira impensada, pouco refletida que são as Organizações Sociais (OS). O próximo passo “natural” são os planos se prepararem e assumirem também estes serviços competindo com as OS que muitas vezes nem são do setor saúde. O maior problema não é a privatização dos serviços mas a capacidade de regular e contratualizar do estado brasileiro que é muito pequena e ao invés de nos capacitarmos para isso a discussão ficou na tangente, como numa “fuga do tema”. Os sanitaristas tem o dever de serem experts nesta área de contratualização e estamos muito atrasados em especial na atenção básica. A corrupção não é uma questão específica porque é “macro”. Existe também com funcionários públicos que não cumprem a carga horária e é algo que o país deve enfrentar sempre, com serviços públicos ou privatizados. 

Além deste aspecto financiamento-serviço, não há um documento oriundo de lideranças do Movimento da Reforma Sanitária que defenda o generalista bem formado (e não o recém formado) na porta de entrada do sistema. Pelo contrário, em 1985, quando o sanitarista Hesio Cordeiro era presidente do INAMPS foram canceladas as bolsas de residência de medicina geral comunitária por medo de perder poder ao “dividir uma área”, em uma ação condizente com o período de exceção do qual o país estava saindo. Só sobreviveram os programas que não dependiam das bolsas de residência do INAMPS ou que foram buscar alternativas. Se isso é história superada, também não há documento recente de sanitaristas defendendo o generalista bem formado na porta de entrada do sistema. No Reino Unido, Nova Zelândia, Dinamarca, Canadá e demais países que servem como inspiração os sanitaristas passam uma parte considerável do tempo e de sua produção intelectual defendendo os generalistas treinados na porta de entrada do sistema (enquanto estes mesmos generalistas atendem toda a população). Aqui vale a pena contar uma história. Em 1969 a epidemiologista Carol Buck foi ao Reino Unido entrevistar jovens médicos de família e escolheu Ian Mc Whinney. Convidou ele para dirigir o que viria a ser o primeiro departamento de medicina de família do Canadá, na Universidade de Western Ontário. Carol Buck dividiu seu departamento de medicina comunitária (correspondente a nossa medicina preventiva) em dois: medicina de família e epidemiologia e bioestatística. Ou seja, transformou um departamento potencialmente inútil e anacrônico em dois úteis e voltados para o futuro. Todas as universidades canadenses trilharam caminhos semelhantes, o que foi mais um passo importante e concreto para a dissociação do modelo de saúde canadense do americano, seu principal parceiro comercial mas um perigoso vizinho no quesito "modelo de sistema de saúde". Hoje Carol Buck é considerada uma ícone no pais, e o que poderia ser uma perda de poder representou o contrário. No Brasil falar em dividir departamentos de medicina preventiva ou criar departamentos de medicina de família é uma heresia. É “dividir o poder”. De quem?

Enfim, todos os países estudam uns aos outros antes de fazerem mudanças. Os ingleses enviaram um pesquisador entre 2009 e 2010 para “entender o PSF”. Este evidentemente fez um relatório com pontos positivos, pontos negativos, riscos e oportunidades, objetividade esta que temos dificuldade no Brasil. É fundamental saber onde se está e para onde se quer ir. O corporativismo sofisticado, não o primitivo de algumas especialidades médicas tão criticadas por isso, do que restou do Movimento da Reforma Sanitária é um empecilho. Nos eventos da Abrasco infelizmente as discussões são sempre as mesmas com as mesmas pessoas. Elas sempre atacam os “inimigos externos” e saem aplaudidas de pé enquanto os donos de planos de saúde nem se dão ao trabalho de contestar os artigos mas dão boas risadas, achando todos os “pensadores” uns “hipócritas inofensivos”, além de “clientes”, é claro. É fundamental fazer um “mea culpa” e acabar com o pensamento mágico que vai existir neste planeta um sistema com financiamento público e serviço publico universal e equânime.  As pessoas que vivem na dura realidade agradecem.

 Leitura sugerida:

1.       Gérvas J. Perez Fernandez M. Organização da Atenção Primária à Saúde em Outros Países. Em Gusso G, Lopes JM. Tratado de Medicina de Família e Comunidade: Princípios, Formação e Prática. ArtMed: Porto Alegre, 2012.
2.       Saltman RB, Rico A, Boerma W. Primary Care in the Driver´s Seat? Organizational Reform in European Primary Care. European Observatory on Health Systems and Policies Series. Disponível em http://www.euro.who.int/__data/assets/pdf_file/0006/98421/E87932.pdf
3.       Starfield B. Atenção Primária. Equilibrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília: UNESCO, Ministério da Saúde, 2002

sábado, 12 de janeiro de 2013

DAB está prestes a lançar o 752 da Vulcabrás


Gustavo Gusso

As notícias que chegam de forma não oficial dão conta que o Departamento de Atenção Básica (DAB) lançará o um prontuário eletrônico que poderia se chamar “752 da Vulcabrás” porque, a semelhança do sapato da década de 80, pretenderá servir a todos os profissionais da atenção básica do Brasil inteiro, caso a informação esteja correta. 


Trabalhar no Ministério da Saúde não é fácil. O mais comum é escutar quando o funcionário sai e volta para sua cidade de origem: “aprendi muito enquanto estive lá”. A maior Universidade da área da saúde do Brasil chama-se Ministério da Saúde. O correto seria o funcionário, mesmo de cargo comissionado, sair com a sensação que contribuiu pelo menos na mesma medida que ganhou. A impressão que dá olhando a distância é que o DAB está engatinhando, dando os primeiros passos com relação a prontuário eletrônico e informatização da rede. Deveria partir do acumulo que há nesta área, principalmente na Europa. A Inglaterra acaba de enterrar bilhões de euros em um projeto que tentaria unificar os sistemas e que seria dependente de quatro empresas apenas (Don't Repeat the UK's Electronic Health Records Failure: http://www.huffingtonpost.com/stephen-soumerai/dont-repeat-the-uks-elect_b_790470.html). Está bastante claro que a atribuição do governo em relação a informatização é:

1. criar padrões de interoperabilidade e até softwares que agreguem informações como é a intenção do GIL e do SIAB, o que muito corretamente tem sido feito pela Secretaria de Gestão Participativa comandada pelo experiente Secretário Odorico Monteiro, e

2. desenvolver mecanismos e protocolos de certificação de produtos que coletem informações primárias, tanto com relação a segurança quanto aos critérios mínimos de qualidade definidos pelo que há de mais relevante publicado sobre tecnologia da informação (parte que a SBIS tem grande acumulo) e sobre a demanda dos profissionais de atenção básica (tema que a SBMFC tem bastante a contribuir através do GT de Classificações e Prontuário Eletrônico).

Todos os governos que tentaram desenvolver sistemas de informação próprios ou unificados seja através de equipes próprias ou contratando empresas deram com os burros n`água de diversas formas. No Brasil, o DataSUS tem um histórico desfavorável de tentativas de desenvolvimento de softwares próprios para manejo de informação primária que tem sido corrigido nesta gestão. Um exemplo é o SiSReg que mesmo após anos ainda é muito rígido e dificilmente poderá ser usado satisfatoriamente na próxima década na maioria dos municípios. Será sempre um instrumento defasado ou no máximo adequado a minoria dos locais. Esta é outra característica de softwares: quando o projeto começa errado, seja por causa do produto em si ou da inserção do governo no projeto, dificilmente atingirá um nível de excelência mesmo com correções de rumos.

Há enormes falácias nisto que se convencionou chamar de “software próprio” ou “sistema unificado”.  Prontuário eletrônico não é um cadastro das Casas Bahia. Mesmo que o governo detenha o código fonte ficará dependente, se não refém, da equipe que desenvolveu ou da empresa que contratou. A abertura do código fonte não significa autonomia. A relação entre gestão e equipe de desenvolvedores, seja do próprio governo ou vinculada a alguma empresa, é sempre um casamento em que a separação é um processo difícil. Por isso tem que haver um namoro extenso e, principalmente, um contrato bem elaborado. É muito mais plausível elaborar um contrato detalhado, em especial se o contrato tiver suporte de um processo de certificação bem elaborado, com empresas do que com um conjunto de funcionários. Além disso, é mais factível que em um sistema descentralizado de um país continental haja liberdade para que as autoridades locais, incluindo os conselhos municipais de saúde, possam escolher com quem quer se vincular e as adaptações que desejam fazer desde que respeitem os requisitos mínimos da certificação.

Por fim, o prontuário eletrônico é um software que funciona como um instrumento de trabalho, cada vez mais essencial aos profissionais da saúde. É como cadeira, sapato, estetoscópio. Não é função do governo fabricar nenhum deste itens. Mesmo países pequenos com sistemas de saúde majoritariamente públicos como Holanda e Dinamarca se dedicam a certificação e padrões de interoperabilidade e segurança.

Ou seja, baseado nos princípios que regem as economias de países com sistemas de saúde universais e equânimes e nas experiências destes países, um projeto de software próprio para o país todo (mesmo que seja a adesão voluntária) tem pouca chance de dar certo a médio prazo e revela ainda aspectos stalinistas, ou seja, o desejo do governo de controlar as informações no seu nascedouro. Seria algo compreensível na década de 70 quando o mundo engatinhava tanto na informática quanto nos modelos econômicos ou na década de 80 quando foi lançado o sapato 752 da Vulcabrás que prometia agradar do patrão ao empregado e teve como garoto propaganda do Maluf ao Brizola passando por Vicente Matheus. Mas hoje já se sabe que nem os Estados Unidos estão corretos ao pregar o laissez-faire sem padronizações e muito menos a União Soviética estava correta ao fabricar de sapatos a carros para que toda população usasse. 

Em 2013 certas atitudes já nascem extemporâneas. O mais grave é que se perde tempo e oportunidade de fazer um processo de certificação bem elaborado. O problema é que é muito mais difícil fazer a certificação do que um software pois o processo de certificação permite que se aprenda com erros e se comece próximo ao zero enquanto na certificação é necessário conhecer bem a imagem objetivo. Provavelmente após desenvolver o software a equipe de técnicos terá algum acumulo para elaborar este processo. Talvez seja tarde demais, e esta mesma equipe já vai ter voltado aos seus municípios de origem com todo este acumulo. 

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

A avaliação do Cremesp


Por Gustavo Gusso

Na medicina, o ensino guarda grande paralelo com a assistência. As avaliações refletem o que ocorre no sistema e não o contrário, ou seja, não é a avaliação dos novos egressos que irá melhorar o sistema.

Cada vez mais os países desenvolvidos com sistemas de saúde públicos de qualidade valorizam o primeiro contato do paciente com um medico generalista bem formado, na maioria dos lugares chamado médico de família. Este profissional chega a ser responsável por 70% da formação da graduação no Canadá. O departamento de Medicina de Família e Comunidade da Universidade de Toronto tem 1200 médicos de família dentre professores colaboradores e associados. No Brasil a realidade é oposta. Raramente há Departamentos de Medicina de Família nas Universidades. Praticamente 90% do ensino é feito por especialistas. Portanto, embasar a prova do Cremesp em avaliações de egressos que ocorrem em países como o Canadá é um despropósito.

Além disso, o que se objetiva avaliar em países como o Canadá é o conhecimento do graduado em medicina geral. Mesmo nas melhores Universidades do mundo o médico não sai apto a exercer a medicina. Desta forma, a prova do Cremesp não avalia ou não deveria avaliar, se o egresso está apto a exercer a medicina. A residência médica deveria ser obrigatória e após a residência deve haver uma avaliação do especialista. Se o objetivo é avaliar a aquisição de conhecimentos gerais durante a graduação, então a prova do Cremesp deveria ser elaborada majoritariamente por generalistas, que nos países com sistemas de saúde avançados são os médicos de família e em alguns locais também os pediatras gerais ou comunitários.

Ou seja, assim como em um sistema de saúde que se preze o primeiro contato do paciente não deve ser feito com especialistas que cuidam de apenas uma determinada área, o ensino da medicina e a avaliação dos egressos também não deveriam ser realizados majoritariamente por estes especialistas. Por mais que um especialista tenha feito medicina, sua visão é enviesada tanto no atendimento de primeiro contato quanto na elaboração da prova.  Esta desvalorização e escassez do generalista no ensino e na assistência não está correta e é um dos estimuladores de um sistema de saúde tanto público quanto privado bastante falho, embora no Brasil isto seja pouco debatido e dado como aceitável. 

Entender uma prova feita por médicos especialistas da elite médica e que são ao mesmo tempo vítimas e alimentadores de um sistema de saúde nada exemplar é um grave equívoco e um massacre aos egressos ou mesmo as escolas médicas que estão tentando inovar e fazer o recomendado que é mudar a lógica. Enfim, existem poucas coisas corretas no sistema de saúde publico e privado brasileiro, bem como no sistema de educação médica. Esta avaliação do Cremesp não está dentre elas. É um tema muito complexo e esta simplificação é bastante perigosa e provavelmente mais uma estratégia para que nada mude ou para que ratifique o status quo e a falácia tácita que é “há apenas seis hospitais de excelência no Brasil e uma meia dúzia de faculdades de medicina de fato boas e tradicionais que alimentam estes seis hospitais de bons médicos”.