sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Medicina e comércio

Cada vez mais a prática em saúde, não só a medicina está embricada na relação mercantil, comercial. Muita gente advoga que a melhor, se não a única, maneira de regular esta relação é com concurso público e estatização dos serviços. É um grave equívoco. Quem está no dia a dia da assistência sabe que a estabilidade e o salário fixo não raramente levam a uma competição para saber "quem trabalha menos". A explicação é simples, com a remuneração fixa, quem atender menos ganha mais, se o cálculo for feito por consulta. A solução não é também pagamento por produção que chega a ser pior.

Independentemente da forma de remuneração, o importante desta discussão é que a relação mercantil na saúde deve ser regulada. Ao contrário da educação onde a "padronização" é o alvo, uma certa competição regulada, na saúde, é benéfica. Por isso os serviços devem ser privados com financiamento publico. Porém se não houver regulação é um desastre. Isso ocorre com o setor privado brasileiro que corresponde a 55% dos gastos em saúde e, portanto, dita as normas sempre inspiradas no fracassado anti-sistema de saúde norte-americano.

Assim, cada vez mais é difícil distinguir medicina de comércio e os jovens médicos ficam bastante confusos quando caem no "mercado", nas suas próprias palavras. Tem ortopedista fazendo acupuntura, acupunturista fazendo estética e esteticista tratando dor. Ou seja, uma grande parte, talvez mais da metade, dos médicos não atua na área que foi treinado. O importante é a "colocação no mercado", achar seu "nicho".

Mesmo os que foram treinados para o que fazem também têm muita dificuldade de saber onde acaba a medicina e começa o comércio. Dois exemplo claros. Um é quando um especialista focal se arrisca a falar de "prevenção". Mas se é especialista focal não consegue falar de "prevenção" e sim de câncer de mama (http://imprensasaudavel.wordpress.com/2012/10/25/mercantilizacao-do-cancer-de-mama/), câncer de próstata, hiperatividade, ou seja, de uma doença. O discurso de "prevenção" passa a ser o de "vendedor de doença".

Outro exemplo mais corriqueiro é quando o obstetra oferece "parto normal ou cesárea" como se a gestante estivesse em um shopping center. Isso é tido como "normal" ou corriqueiro no Brasil mas é de certa forma uma aberração. Eticamente, o trabalho do obstetra é acompanhar a gestação e se houver necessidade intervir. A necessidade pode ser um pavor da paciente pelo parto normal. Ou seja,  a paciente pode expor um medo, uma expectativa mas não ser induzida a eles nem pelo profissional no consultório nem pelo mesmo profissional através da imprensa, o que é uma aberração ainda pior.

Na Europa ocidental, Canadá, Nova Zelândia, etc... onde o sistema de saúde é organizado e hoje serve dentre outras coisas para minimizar a crise econômica, ao contrário dos EUA onde é uma das causas, um obstetra "oferecer" cesárea na consulta com a gestante ou um urologista ir na televisão falar para todos os homens fazerem PSA sem uma contextualização adequada do tema são considerados aberrações que causariam grande reação da comunidade científica porque, no minimo, são questões polêmicas e há fortes indícios científicos que os riscos superam os benefícios. Um obstetra que acompanha a gestação normal melhor do que o outro, tem melhor vinculo, melhores indicadores, deve ganhar mais mas não o que oferece mais eficientemente cesáreas ou o que assusta mais as mulheres e a população. Há nisso um circulo vicioso e o sistema de pagamento, incentivado pelos profissionais, favorece esta prática mais comercial do que médica.

Enfim, é fundamental que as aberrações voltem a ser notificadas como tal e que se possa reconhecê-las. Caso contrário, chegará um dia na saúde em que se achará normal a medicina ser apontada como a terceira causa de morte (http://www.jhsph.edu/sebin/s/k/2000_JAMA_Starfield.pdf) sem que cause uma reação na prática médica e no sistema de saúde, assim como hoje se acha "normal" assaltos e assassinatos. Exatamente a situação surreal em que provavelmente estamos vivendo. Ou seja, quando se entra em um consultório médico ou em um hospital, não se está entrando em um shopping center. Qualquer semelhança é mera coincidência, ou deveria ser.

2 comentários:

  1. Um novo conceito de atendimento foi introduzido pelos hospitais com estilo Apart Hospital, por meio de seu setor de hotelaria. A equipe oferece um atendimento mais personalizado e que faz com que o paciente se sinta em casa. As camareiras conduzem todo o processo de entrada e saída do paciente no hospital e acompanham sua estada, atendendo a suas necessidades.
    Sabe o que acho engraçado Gustavo, estão transformando hospitais em hotéis mais que em shopping centers.

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  2. Mas transformar os hospitais em hotéis faz parte do jogo. Querem confundir conforto e decisão compartilhada, ou seja, conceitos centrais à boa medicina, com comércio puro. Até aí tudo bem mas no Brasil isso se faz em parte com o sofrimento da população, renuncia fiscal, etc...

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